Por: Julio Honaiser
Duas mulheres de tempos distintos e duas percepções de moda que falam muito mais do que aparentam. De um lado, a “mulher ornamental” do Brasil colonial: subordinada ao patriarcado que a tratava como uma espécie de corpo aberto à ornamentação. Do outro lado, a mulher burguesa pós-Revolução Industrial, cujo tamanho das joias era proporcional à força econômica e influência de seu marido. Dois exemplos que o sociólogo Gilberto Freyre cita para discorrer sobre a moda como indicador de aspectos socioculturais de seu tempo.
É por esse viés dos costumes e hábitos do cotidiano que o autor de Casa grande e senzala se aventura, ao decidir escrever sobre um tema que não se esperava encontrar no repertório de um intelectual do século passado. Mas Gilberto Freyre é uma exceção à regra. Dedicou uma obra inteira ao tema. Modos de homem & modas de mulher, que teve lançamento póstumo em 1987, chega de novo às lojas, relançado pela Global em uma edição caprichada.
Freyre foi um desses intelectuais que ajudaram a explicar o Brasil. E para a felicidade dos leitores escolheu o caminho da prosa simples, do ritmo de conversa e das anedotas do dia-a-dia para tratar dos hábitos e da forma sui generis de viver do brasileiro. Depois de falar dos hábitos de moradia (Casa grande & senzala e Sobrados & mucambos) e de realizar uma verdadeira sociologia do doce (Açúcar), o antropólogo resolveu falar de moda. E acabou fazendo isso com curiosa propriedade, justamente porque não se deteve a noções de “certo e errado” comuns nessa área, dando preferência à abordagem do assunto como fenômeno sociológico. A moda é tratada como aquela que “estiliza as mudanças sociais” e esse é o trunfo de Modos de homem & modas de mulher. A moda que fala dos modos – da moral, do decoro, da religião e até do linguajar.
A obra vai dos tempos de colônia até a década de 1980. Para isso, o autor usa ensaios e comentários interligados para falar de temas ainda atuais: o envelhecimento da mulher, o traje feminino como sinônimo da prosperidade familiar, a relação da moda com ecologia (dá pra ser mais atual?), as vítimas dos modismos, a consciência brasileira da própria tropicalidade e o consequente “abrasileiramento” da moda vinda de fora, entre outros tópicos. Por exemplo: o triunfo do algodão como tecido nacional, fresco e compatível ao clima; a disposição da brasileira às cores, que contrastam com a “morenice” de suas peles (Sônia Braga parece ser a musa de Freyre e o arquétipo da feminilidade nacional).
O dom quase premonitório (o livro foi escrito muito antes de se cogitar uma semana de moda brasileira) de Gilberto Freyre fica evidente no momento em que trata do Brasil como espécie de “guru fashion” dos países ibero-tropicais, com potencial ascendente para não somente degustar as influências de fora, mas também pensar a própria moda, a própria imagem. E também quando elabora uma nova concepção de feminilidade – que chega com a mudança estética e ética da mulher – atrelada a uma certa masculinização dos hábitos e costumes e à adaptação delas a papéis outrora exclusivamente masculinos.
Por essas e (muitas) outras que em tempos de maratona de desfiles – Fashion Rio e São Paulo Fashion Week se aproximam – a leitura sem afetação dos códigos de vestimenta que Freyre faz pode se mostrar uma interessante ferramenta de análise do fértil período que vive a moda brasileira, com uma profusão de grifes e marcas. Freyre foi um gênio porque conseguia escrever sobre os assuntos mais curiosos. Pena não ter conseguido assistir de camarote à solidificação da moda nacional que previu. De qualquer forma, ponto pra ele.
Fonte: Blog de O Livreiro