Conferência Ricos e Pobres no Alentejo e outras antropologias Embaixador José Cutileiro

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A obra que José Cutileiro intitulou “A Portuguese Rural Society” em 1971, e “Ricos e Pobres no Alentejo” na tradução portuguesa de 1977, permanece um marco tanto para a Antropologia como para as Ciências Sociais, e em geral para qualquer reflexão sobre a sociedade portuguesa contemporânea.

Fundada num conhecimento pessoal profundo do contexto humano do Alentejo e do país, sobre o qual o autor desenvolveu em meados de 60 o seu trabalho de campo e a pesquisa académica para doutoramento em Antropologia na Universidade de Oxford (1968), a obra ganhou ao longo deste tumultuoso meio século um estatuto singular entre obra científica, documento histórico e ensaio de filosofia moral.

Concebida numa época em que, sob a ditadura, as Ciências Sociais tentavam firmar-se no apertado âmbito consentido, a obra de José Cutileiro assinalou-se no conjunto da actividade científica que interrogava então a realidade social portuguesa numa atitude muito distanciada já dos anteriores horizontes ideológicos do nacionalismo e do populismo de matriz romântica, caros ao folclorismo e à propaganda do salazarismo.

Foi a época em que figuras como Silbert, Sedas Nunes, Teotónio Pereira, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Lindley Cintra ou Giacometti, sozinhos ou com as suas equipas, se lançavam ao estudo deste país quase exclusivamente rural e antigo, pobre e diverso, que exigia abordagens humanamente muito próximas, com grande rigor de registo e abertas ao cruzamento disciplinar.
A Antropologia, que não era sequer ensinada em Portugal, viveu então um período de grande produtividade, mas quase despercebida, em torno do projecto científico e museológico de Jorge Dias e da sua equipa.

Em Oxford um renovado interesse da Antropologia britânica pelas sociedades mediterrânicas depois do 2º pós guerra, sob o impulso de Evans-Pritchard e com Peristiany, Campbell e Pitt-Rivers, centrava as pesquisas nos valores morais e na estratificação social. Portugal era parte desse “mediterrâneo” rural, o Alentejo era nele a sua expressão perfeita, e José Cutileiro o antropólogo certo, na universidade certa, no momento certo.

O seu livro nasceu assim nesse paradoxal período da vida intelectual do nosso país, que vivia ao mesmo tempo isolado e obstruído, mas ocultamente brilhante e cosmopolita. Em 1974, o 25 de Abril criou por fim as condições académicas e cívicas para outros trabalhos, hoje já clássicos, como os de Joaquim Pais de Brito, Brian O’Neill, ou João de Pina-Cabral.

Entretanto, o livro de José Cutileiro, referência hoje ainda para todos os estudos sobre estratificação social e desigualdade, no Alentejo ou não, permaneceu num estatuto singular a vários títulos: Situado a Sul quando quase todas as pesquisas trabalharam terrenos a Norte; inscrito na crescente encruzilhada disciplinar em que o debate sobre a ruralidade consiste, parecendo, mas só por engano, ter caducado como assunto; confrontando crítica e premonitoriamente a Reforma Agrária e as suas sequências; interpelando as vias ambíguas e persistentes das desigualdades que nenhuma modernidade veio ainda desmentir, o livro de José Cutileiro guarda a perturbadora frescura da sua verdade testemunhal, e a actualidade da inquietação humana que lhe está na origem.

FONTE: local.pt

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